YOGAS MONSTRUOSAS E CONTAGIOSAS
- PhD. Roberto Simões

- 29 de jul. de 2022
- 4 min de leitura
Atualizado: 22 de set.

O Atharva Veda é um monstro. Recheado de encantamentos, maldições e curas mágicas, nasce de yogues-xamãs e não dos yogues-sacerdotes. Enquanto os textos revelados (śruti) são gestados por filiações reprodutivas de uma elite profissional em escolas assépticas, o quarto veda gesta-se de filiações incestuosas com doulas no rio, por isso “olhada com desprezo pelos brâhmanes”.¹
Entre os anos de 1900-1700 a.C. ocorre o declínio da cultura matrilinear Harappa/Mohenjo-Dado por profundas alterações climáticas e geológicas que afetaram o continente indiano, diluindo toda uma caosmótica xamanidade urbana — a geofilosofia favoreceu o sedentarismo de alguns brâhmanes.² Mas aqueles yogues-xamãs não morreram, se mudaram da urbe em direção às florestas. Sua natureza, no entanto, mantém-se viva ainda hoje, sobretudo em yogares de culto à terra, aos animais e divindades dançarinas — demônios|daimon ou espectros — seriam eles os siddhāntas, aqueles aliados de yogues de encruza e crematórios?³
Estes "yogues-xamãs", os formuladores da magia athārvica, são os dāsas, anāryas ou drávidas; “aqueles selvagens, bárbaros, demônios e|ou infiéis”, em suma, todos corpos não-arianos: inimigos, monstros, contagiosos, poderosos, por isso temidos.⁴
Narcisos acham feio todos os que não são seus espelhos.
Arya passou a ter então uma conotação de distinção social entre brâmanes, enquanto anārya designou todos os que ficaram fora do estatuto religioso bramânico, incluindo aqueles que foram apelidados de demônios e se dedicaram a práticas mágicas.⁵
Os “outros” são os não-védicos (dāsas ou anāryas), enfim, os pertencentes a diferentes ordenadores de realidade; são indisciplinados.
A estrutura da cultura mudou pouco de lá para cá. Foram os corpos, metamorfoseados pela alquimia dos encontros, que se transformam pensando novas ideias. Sim, as formas talvez cambiem, mas as forças continuam as mesmas: de um lado os que se imaginam donos da pohatoda, e do outro, os demais corpos entre. Se atente à simbologia do Atharva que está nos Vedas; mesmo como “capítulo menor”, impregna uma escritura perfeita em si-mesma. Ação subversiva.⁶
São gestos que inventam a intensidade dos periféricos yogues marginais de outrora vivendo hoje (e sempre contemporâneos) no peito de todes dançarinos rituais: de Durga a Shiva, Ariadne a Dionísio e Lou Salomé com Nietzsche… Todas yonis e lingas em savasanas vivos.⁷
Yogas monstruosos que aterrorizam o sono delirantemente imaculado dos ascetas guardiães das essências que imaginam viver (avidyā na sua mais perfeita tessitura de māyā). Mas mesmo com toda a organização de corpos, letras e hinos, nada conseguiu dar conta do contágio das carnes se encontrando sob luas cheias orgiásticas que insistem em devorar cordões brancos, nomadizando yogares selvagens que não se deixam domesticar por instituições.⁸
Sobre o que você estava falando mesmo?
Sobre filiações pouco intensivas de yoguicas epidianas védicas buscando castrar a magia de corpos em relações potentes multiplicadores de yogares-outros.⁹
Se yogas vivem hoje são graças a corpos em voos místicos jaguares, macacos, peixes… Afinal, não foi assim que nasceram os Nāthas, mãe dos Hāthas? Um peixe ouvindo Shiva ensinar Yoga à sua esposa (ou foi o oposto, por isso ela dormiu, em tédio do aluno Shiva distraído?) num rio indiano (seria iraniano ou egípcio?). Esse mesmo peixe atento e pleno aos encantos yoguicos metamorfoseia-se em homem, ensinando a Gorakṣa, esse com jeito e cara de vaca. Ambos budistas e Shiva|Durga, uma velha bruxa da floresta, por isso andrógina?¹⁰
Os poderosos aqui são os que nada temem, não precisam de castas para se distinguir, pois sabem da singularidade natural de todes. As poderosas aqui são yogues|daimons de parentesco incestuoso sem temer misturas, hibridismos, pois nem pai ou mãe sabe quem são (ou seriam todos?). Os yogues-xamãs-anāryas, aqueles de pensamento selvagem que renegam com orgulho qualquer filiação āryana, contagiam e miscigenam yogares com tambores, baixos elétricos e sintetizadores em festivais de yoga pelo mundo; eles pitam enquanto entoam o sagrado mantra OM em rodas de samba e hinários por aí.
Saravá seu Zé e Padilha, salve os loucos e mestre Irineu: eles sabem amar de verdade o yogar nosso de cada dia.
Notas de rodapé
Kenneth Zysk, Medicine in the Veda: Religious Healing in the Veda (Delhi: Motilal Banarsidass, 1998), 14-22.
Upinder Singh, A History of Ancient and Early Medieval India: From the Stone Age to the 12th Century (Delhi: Pearson, 2008), 152-157.
David Gordon White, The Alchemical Body: Siddha Traditions in Medieval India (Chicago: University of Chicago Press, 1996), 45-56.
Asko Parpola, The Roots of Hinduism: The Early Aryans and the Indus Civilization (Oxford: Oxford University Press, 2015), 96-101. Obs: A ideia de dasas/anaryas como "yogues-xamãs ancestrais” é uma interpretação simbólica/metafórica; os textos védicos referem-se aos dasa(s) / dasyu(s) muitas vezes como “inimigos” ou “não-arias”, por isso a associação livre realizada aqui como xamãs ou feiticeiros, pois estes, na literatura da ciência da religião, são vistos como antagônicos, dentro do campo espiritual de uma dada sociedade, aos sacerdotes.
Romila Thapar, Early India: From the Origins to AD 1300 (Berkeley: University of California Press, 2004), 69-73.
Signe Cohen, “Memory, Desire, and 'Magic': Smarā in the Atharvaveda,” Religions 11, no. 9 (2020): 434.
David Gordon White, Kiss of the Yoginī: ‘Tantric Sex’ in its South Asian Contexts (Chicago: University of Chicago Press, 2003), 88-93.
Michael Witzel, "Substrate Languages in Old Indo-Aryan (Rigvedic, Middle and Late Vedic)," Electronic Journal of Vedic Studies 5, no. 1 (1999): 1-67.
Romila Thapar, The Past Before Us: Historical Traditions of Early North India (Cambridge: Harvard University Press, 2013), 120-130.
David Gordon White, Sinister Yogis (Chicago: University of Chicago Press, 2009), 114-120.




Por vezes alimentos não são digeridos, pode ser que não tenham sido afetados pelo fogo no tempo necessário, pode ser que tenham sido engolidos em vez de mastigados, pode ser que sejam demasiado robustos para serem decompostos por falta de potência ígnea, pode ser que ... aconteceu. Um desses alimentos é atharva, cuja linguagem corre por fora do sânscrito védico e remete para raízes da língua que muites sacerdotes gostariam de esquecer. Desde ter uma boa colheita a fechar o corpo contra cobras, encontramos por lá várias formas para encantar o corpo e a vida. Fica o convite para todes yogues canibais, temperem a prática com um pouco de atharva e vejam os sabores que surgem.