O corpo é a base de qualquer yoga, meditação ou espiritualidade. E cada corpo experimenta o que pode. O que pode um corpo? Cogitar realidades. Há um corpo organizado e outro, desorganizado, pura potência: corpo vibrátil, como diz Suely Rolnik. O jeito que você anda, come, fode e caga é uma máquina desejante acoplada a outras em regimes associativos.
Não há metáforas aqui. Somos produção de fluxos que se intensificam, se conectam a outras máquinas-organismo|organizadas, mas também cortam, interrompem fruições em disjunções relacionais para novas adaptações: devires. Somos potências buscando potências. E tudo ocorre em platôs pré-reflexivos corporais: existimos, logo pensamos.
É o astro-rei, eu sei, mas vem depois.
Pensemos nas religiões e as diversas outras formas de espanto ao mistério dos encontros corporais. A verdade, essa deusa moderna, são perspectivas de coletivos corpóreos. Para ficar mais fácil, pensemos no Yoga como uma agência que conecta-convida desejos passarem. É a bigorna do ferreiro, o lápis do escritor, a prancha para um surfista.
Yoga vive em corpos. Corpos em yogamentos aprendem a tomar distância necessária para observar suas experimentações intensivas antes das nomeações. Só depois que doutrinas, escolas, ritos e um yogar-alguma-coisa nascem: Darsana-Yoga, Hatha-Yoga e o Iyengar-Yoga foram paridos de corpos yogando intensidades. Mas descrever as percepções, não são nada comparado as intenSões.
Não obstante, tudo isso pode falhar: experimentações, intensidades, sensações e percepções dos corpos em yogamentos. Não é fácil ou brincadeira. Você pode morrer. Pensando melhor, você deve morrer - não é savasana no final?
Posso sentir intensidades yoguicas de yogamentos, mas não ficar nada, pouco ou, o mais comum, não saber nomear, não deixar marcas ou criar memórias: ah, é gostosinho. Hipnose disfarçada de Yoga.
Por isso, a necessidade de fazer passar mais com yoga, em atualizar essas intensidades constantemente. Precisa, antes, surgir um sistema ritual organizado, como os sadhanas, os festejos e peregrinações, como o kumbha mela, as obrigações diárias, calendário de festas, culto aos ancestrais, e por aí vai. Essas invenções são para haver sulcos conectivos. Tudo para fazer passar mais e de novo, de novo. É um processo lento e gradual.
Tecnologia yoguica para criar uma memória, marcar na carne (às vezes até literalmente, como entre os kamphatas que furam as suas orelhas, os longos cabelos em dreadlocks dos nathas). Em suma, é preciso criar um habitus yoguico.
Bourdieu define habitus como "disposições, estilos de vida, maneiras e gostos incorporados e campo como um espaço social que possui estrutura própria e, relativamente, autônoma em relação a outros espaços sociais, com uma lógica própria de funcionamento, estratificação e princípios que regulam as relações entre os agentes sociais".
Yoga, como qualquer outra religião ou espiritualidade, é uma máquina ou aparelho social que agencia corpos a desejarem intensidades. E, para que tudo isso? Desalienação da construção social do seu corpo que, por sua vez, cria a realidade em que vive consensualmente no seu coletivo ou socius. O socius, é uma máquina de produção, reprodução, distribuição e consumo desejante de si-mesmo. Caso contrário, se todos seguissem suas vontades, desejo, libidos, tesões e tensões não haveria sociedade. Será mesmo? Não haveria um meio bonsensual ao invés do consenso?
E como isso se processa?
Primeiro há que desterritorializar aquele corpo codificado já desde o nascimento; desorganizar seus desejos, voltados para si-mesmo e, desa-habituá-lo de seu corpo, como que o introduzindo em uma nova máquina.
Os aparelhos de captura dos yogas-Estado ou yogas-Capital funcionam do mesmíssimo jeito. Por isso, a contradição da libertação. Há sempre que estar à espreita! Tudo pode falhar.
Depois desse longo e minucioso processo, pois é preciso ser cirúrgico e com doses de prudência, inserir o registro e o consumo na própria produção: Yogar para retomar, no seu, e em outros corpos (se você for professor de yoga) as produções de si, num mesmo processo.
Haverá aqui uma longa e dolorida sobrecodificação ou inserção no corpo dos novos signos: uma memorização ou mnemotécnicas, no nosso exemplo, de significações yoguicas. Lembra de você, nos seus anos de formação em yoga? Então, ali, lhe inseriram códigos interpretativos sobre chackras, kundalini, que yoga é "a diminuição do turbilhão da mente". Isso não foi intelectualmente, mas corporal, sempre é corpo, só depois, a mente forma uma ideia das sensações que lhe passaram nas práticas.
E ler textos, livros é corporal, certo?
Agora, com um habitus yoguico incorporado (onde mais?), o coletivo que lhe tatuou seus signos e "verdades" yoguicas, precisa atualizar eles periodicamente em você, pois, caso contrário, sensações que pululam no seu “corpo vibrátil” desformado, não-organismo, um corpo sem-órgãos, podem (e irão) desarranjar tudo. E eu não estou falando da fisiologia sutil do yoga, com seus chackras, nadis e cobras enroladas no períneo. Não, porque isso, também foi organizado em escrituras, medicinas e filosofias e, incorporado em você no processo, certo? Me refiro ao antes dessa organização.
Não são também as células, os hormônios e neurônios que constroem os sistemas fisiológicos biológicos, pois isso aconteceu na escola, lembra das aulas de biologia e química orgânica? E nem a parafernália de Id’s, ego’s, mentes e memórias de uma psiquê. É antes, eu falo do corpo anterior, disforme, sem-órgãos, infra-estrutural do restante que inventaram para tentar ordenar um mundo que, desorganizado em seu corpo, é pura potência sensorial de intensidades tesudas ou tristes. O que lhe incorporaram é a super-estrutura, yogar (pode) lhe levar a tocar no antes, no pré-reflexivo, consciência (corporal) perceptiva.
Esse corpo perceptivo existe, é real, ta aí agora, não sente? É tudo o que acontece antes dos símbolos, essas são tentativas de significar esse antes que se passa. E passa onde? Só tem o corpo, onde mais, ora bolas?
Não caiamos na preguiça de se imaginar mundos transcendentes, ideais e delirantes. Estes, os sedentários do yoga, praticam suas saudações ao sol como preparação para subida aos céus. Mas vem surgindo novos yogins. Me refiro aos selvagens e nômades que, artistas contemporâneos do corpo, inventam métodos apropriados para cada tipo de exploração sensorial. Ao invés de japa-malas banhados no Ganges, incensos himalaicos ou lingas shivaístas da Caxemira, profanam o sagrado dos tradicionalistas com bundas rebolantes dançando Trap e morrendo em savasanas de duas horas de experimentação.
Num processo exploratório de seus corpos, aliados à yogas, criam espaços outros, distensionam as membranas duras do sedentarismo yoguico. Ao invés de templos, ashrams, mat’s e shalas, consagram em praças, praias, morros, calçadas, além de brincar em novas posições: imposturas. Seriam eles aqui os ascetas errantes de lá? Promovem uma espécie de reforma agrária que desapropria os “meios e modos de produção” subjetivo corporal yoguicos, retomando para si, a força criativa da potência em yogar. A tradição do yoga habita corpos loucos que dançam, bebem e fumam também.
Ele|as vêm ampliando também os objetos ou ferramentas yoguicas, como japamalas, mantras secretos, sutras sagrados, pranayamas espirituais e até, cordas pregadas em paredes (kuruntas) e todos os asanas que “conduzem à imortalidade” são devorados em banquetes antropofágicos para se incorporar poderes que, antes, nas mãos dos raros e nobres yogins autorizados por escrituras inventadas por eles próprios. Todos esses objetos, agora, benzidos por (em) corpos profanos cozidos no fogo de yogas sem “tradição” indiana. Assim como budistas, jainistas e outras “tribos” dravidicas, abrem-se novas linhas-de-fuga experimentativas.
Esse movimento subversivo e revolucionário contemporâneo e inovador, ao contrário do que os dominantes propalam, impedem que os yogas sejam mercantilizados, pois o que produzem só conseguem ser experimentados, como nas obras de Lygia Clark.
Exemplos concretos do que trago aqui, são os rebolados do yoga marginal, as aulas nas marquises, calçadas, praias, lajes, CAPS e praças do PerifaYoga/BA, do Coletivo Araras/TO, Yoga na Lage/SP, Fluindo Yoga/SP, no Yoga Popular e Revolucionário/SC de Paulo Vasconcelos e a Yoga Restaurativa/SC de Miila Derzett com coletivos vulneráveis.
Qual a diferença para os yogares tradicionais que também atuam em presídios e outras cartografias periféricas? É a pedagogia da autonomia que carregam e aberturas ao diálogo. Não são missionários, mas agentes sociais.
Eles desreificam os objetos yoguicos, pois os expõem fora do ritual. É o caso de Paulo Vasconcelos estimulando corpos artesãos na reconstrução de estéticas de existir em moradores de rua. Malu Damião, yogin preta envolvida no coletivo Cenoura e Tainá Antônio que incorpora a sarração em imposturas de yoga marginal. Mas há também Anderson Martins e seu yogar em devir-arara que envolve a arte das ruas de Araguaína, além de Marta Xavier e outras yogins baianas pelas praças periféricas de Salvador.
O|As yogins contemporâneos renegam categorias de santos, gurus, iluminados, mestres realizados para o de yogins-Gente inacabados. É o inacabamento que os libertam, pois enquanto corpos yogins capitalistas desejam a sacralidade dos conservadores, um círculo vicioso de lucro e axiomatizações retroalimenta o mercado gratiluz (seria isso samsara hoje?). Todes yogins contemporâneos, esse indóceis corpos inacabados, estão libertos, e continuam por aí liberando intensidades e plenos de novas sensações.
Mas não se enganem, em breve (ou se já não ocorre), seus yogares, hoje marginais, serão capturados pelo mercado hype do yoga capital. Entrementes, só conseguirão replicar as formas, nunca suas forças. Os inacabados, nômades e selvagens do yoga serão sempre uma maioria-minoria, vivendo yogares em suas micropolíticas quilombolas desviantes e desejantes por mais potência.
Mais fácil, os yogins buscadores de plenitude capitalística prometida pelos paranoicos conservadores, por delirarem Absolutos, matam qualquer yogar livre, se alimentando de fantasmas.
Esse jeito de yogar constrói defesas mais eficientes e menos rígidas, pois tudo se torna tão útil e pragmático que yoga para eles, se torna tudo o que pode ser vendável. Esse programa social aumenta o estresse, a depressão e a ansiedade, pois promete o que não existe, retroalimentando esse sistema yoguico doentio, mas absolutamente alinhado ao capitalismo neoliberal.
E os contemporâneos, como se articulam em seus guetos, quilombos e coletivos?
Afirmando a vida como força criadora. E isso depende de uma estética apreendida pelo corpo. Por isso a necessidade constante de novas experimentações, pois é aí que as potências se renovam. É uma proteção ao sedentarismo que domina os corpos tristes dos conservadores e capitalistas. Entre os inacabados, yoga é aliado e nunca caminho.
Tudo é ponto B.
Ao invés de buscar acabamentos pelo yoga, o culto ao “treino yoga”, por que não experimentar o jogo-jogado do yoga como obra de arte corpórea advinda da artesania que é Yogar de força autêntica?
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