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Narrativas de Ódio no Yoga, como é possível


O ser humano é um animal fraco mas consciente de sua finitude. Isso o diferencia sobremaneira de qualquer outro ser vivo: é um bicho finito mas que se pensa imortal. Por isso que na gregariedade, os seres humanos constroem (socialmente) os mais diversos “ordenadores de realidade” para negar a morte (e recalcar seus desejos também): Filosofias, Religiões, a própria Ciência, os Mitos e o Senso-Comum cotidiano (do "que é porque é"), são alguns dos exemplos. Em outras palavras, erigem instituições (ou agenciamentos) com os seus próprios agentes sociais para suportar toda a sorte de infortúnios. Estes engenhosos animais, conscientes da brevidade de suas existências pueris (única verdade absolutamente, e fato incontestável), desenvolvem (e seguem fielmente) os mais diversos papéis sociais (sacerdotes, filósofos, cientistas, marceneiros, advogados, CEO da Ambev, funcionários do setor bancário e etc) que cada um deles deve/precisa(?) obedecer (acreditam) para que as suas vidas em grupo tenham um mínimo de sentido existencial, por assim dizer - daí nasce toda uma gama de códigos de conduta moral e valores (como o que é do "Bem" e do "Mal"). Mas alguns destes mamíferos, desconfiados (sem confiança, ou seja, desprovidos de fé mas imersos de vida vivida aqui e agora) da infinitude da vida, visam subverter ou eliminar essa espera(nça) em outro mundo (pois pensam que talvez só exista esse), pois a aposta da espera é muito alta.

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Um dos Ordenadores de Realidade mais conhecidos entre os brasileiros por exemplo, é o da religião cristã que instituiu a crença no outro mundo (transcendente) onde (os que obedecerem sua moral) serão felizes; o Céu cristão ou o Nosso Lar espírita, são os exemplos. Os Yogues indianos antigos (quando vivendo sob o manto ordenador religioso do Hinduísmo e não Cristianismo), pelo contrário, desenvolveram a ideia que o "mundo Perfeito" está aqui (na imanência) e não em outro (na transcendência). Entre os brasileiros (por motivos que não cabe aqui discutir), a instituição religiosa cristã fez acreditar que o sofrimento advém de uma alma pecadora, portanto, imperfeita, mas que adquire (ou retorna a) sua Plenitude após a morte. A religião hinduísta instituiu, pelo contrário, que a alma é Perfeita em Si-mesma, e que a Vida Boa (e não do Bem ou do Mal, mas Boa ou Ruim) já está em você, desde o nascimento. Sofre-se, pensam os Yogues indianos antigos, pois se é alienado (Ignorante espiritualmente/Avidya) da Perfeição/Deus/natureza. Entretanto, em ambas instituições/agenciamentos religiosos erigidos em coletivos humanos diferentes (cristã e hinduísta), papéis sociais desenvolveram-se para manter vivos os seus sentidos de vida. Sem suas crenças gregárias os bichos humanos (des-iludidos) morreriam cedo ou abreviariam suas vidas sem sentido, eles mesmos, retirando-se deste mundo pelas portas dos fundos, por assim dizer. Em suma, o ser humano sem ilusão nenhuma (desiludido, niilista), nas sociedades modernas, toma doses diárias de ilusão em cápsulas: antidepressivos e antipsicóticos 3x/dia após as refeições...

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Já a sua contraparte, as instituições religiosas politeístas, fundaram Ordenadores de Realidade sociais onde há vários deuses, portanto, suas "verdades" também podem ser muitas e não apenas uma única versão Onipotente, Onisciente e Onipresente. Não a toa, as religiões que cultuam vários deuses são classificadas como primitivas e seus habitantes, selvagens pelos "mamíferos" que vivem coletivos adoradores de um único Deus/Verdade. Entre os adoradores da Única-Verdade, desta feita, o Diabo ou o Mal então, podemos supor em nossa digressão, seria a mentira, o sonho, o erro e uma construção inverídica. Por exemplo, o cerne de um processo ritual de desobsessão (poderia ser também purificação ou desintoxicação) demoníaca (e/ou sua influência) é resgatar a Verdade/Deus no indivíduo obsidiado pela Inverdade/Diabo/Mal. Assim, um local divino/sagrado, é uma geografia religiosa/espiritual em que reina a Verdade e onde não há influência da Mentira, do Engano, do Diabo, do Mal ou da Ignorância. Para quem não está conseguindo seguir a ideia aqui introduzida, os gays, os negros, os reacionários e os comunistas por exemplo, devem ser eliminados do planeta, pois no mundo transcendente da verdade única, não há espaço para outras versões de verdade.

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O Yoga de origem hinduísta, advindo de uma sociedade politeísta na Índia (e antes dela), quando transplantada ao Brasil (1950-60), traz consigo muito dos valores morais de todo um processo de “globalização” da filosofia do Yoga aos países não-hindus, que foram muito bem planejados por intelectuais renascentistas indianos do final do séc.XIX até 1947 - quando os indianos proclamam a sua independência da teologia cristã da Verdade/Deus única. Estes yogues indianos (Ramakrishna é um deles, por exemplo) visavam a independência de seu país das mãos inglesas e, por isso, adaptaram sua religiosidade como instrumento de legitimação de um povo politeísta (como é o hinduísta) tão “superior” (e não “bárbaro e selvagem”) quanto os adoradores da Verdade/Deus único (monoteísta). Um dos exemplos foi todo o esforço em instituir uma “trindade” hinduísta (Brahman, Vishnu e Shiva), como se Brahman fosse "O deus" e não apenas "mais um" deles. A ideia por trás está, em uma engenhosa manobra teológica para melhor aceitação de uma "nova" religiosidade e legitimação da sabedoria indiana à visão monoteísta de mundo legítimo - não por coincidência conhecemos o neo-hinduísmo ou neo-vedanta.

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“Deus é a Verdade e ela vos libertará!”. Essa é máxima que percorre a lógica das instituições religiosas monoteístas, ou seja, Deus é sinônimo da Verdade e, como só há um único Deus (por isso monoteísta), também só há uma única verdade. O yoga, milenariamente, uma das perspectivas filosófico-religiosas do politeísmo hinduísta, quando da sua transplantação, já carrega em si, os novos símbolos neo-hinduístas e neo-vedantinos que os yogues indianos modernos precisaram construir para que o Yoga/Hinduísmo buscasse fazer algum sentido aos monoteístas de uma única verdade que os colonizavam. E aqui retornamos a nossa pergunta inicial: Como um yogue (ou qualquer outro religioso – o que busca Deus/Isvara/Natureza) pode se aliar a discursos de ódio? Dito de outra forma, como um yogue, nascido de um mundo pluralista de verdades/deuses sucumbe a discursos de busca de uma única e só verdade/Deus? Simples, o yoga, antes plural e habitado por diversas Verdades/Deuses (como a sociedade grega antes do cristianismo ser imposto como religião de uma única verdade), é confrontado com uma outra cosmovisão de mundo (monoteísta) e se adapta. No Brasil, o yoga, com forte influência da nossa cultura cristã vai adotando a ideia de uma perspectiva mais intolerante sob perspectivas pluralistas (típicas de sociedades monoteístas) como “heresia”. Dito de outra forma, se eu sou monoteísta, e acredito apenas em um único Deus, qualquer versão que esteja pautada pelo discurso relativista/politeísta está errada. O que está nos subterrâneos da consciência monoteísta é: “não posso suportar a ideia que a Minha Verdade (leia-se meu deus) seja apenas mais uma versão da realidade. E aí ele ataca (reage) com violência e ódio como se fosse o mais correto (moralmente), pois imagina estar em uma cruzada contra o Mal, o Demônio, a Inverdade. E toda a sorte de crendices este adota para justificar a "Morada do Senhor", pois crê no Deus/Verdade/Bem estando ao seu lado: “Ele é a Verdade, e me Libertará”, repete como um mantra.

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Mas qual a justificativa nos textos yoguicos de tal pensamento monoteísta ter sido aceita? Os yogues brasileiros interpretam a concepção de já ser perfeito em si-mesmo do Vedanta Advaita por exemplo, como se houvesse uma única verdade a ser conhecida, quando se é totalmente plausível pensar neste mesmo dogma teológico, sob outra perspectiva bem mais “inclusiva” e de respeito a todas as outras formas de existência minoritárias. Pois, se possuímos todos a mesma “essência imaculada”, significa que partimos todos da mesma origem divina (não necessariamente com uma "verdade única" da vida, mas da mesma matriz "divina" por assim dizer) e, por isso, toda interpretação da verdade seria igualmente legítima/natural. Entre os cristãos essa tentativa de argumentação “inclusiva” é mais difícil, pois eles se imaginam “imperfeitos” (ou pecadores), dessa forma, a Verdade está sempre “fora deles”; enquanto os yogues-hinduístas se imaginam, como argumentamos, portadores de uma plenitude em que já são. Em poucas palavras, a verdade está “dentro” deles. Os mais diversos deuses do panteão hinduísta seriam expressão, desta forma, não de um único e “verdadeiro” Deus, mas da própria multiplicidade de indivíduos nascidos “plenos”, ou seja, preenchidos com todas as verdades/deuses; tendo todos os bichos humanos a mesma raiz, seríamos livres para transformar nossas vidas em verdadeiras "obras de arte" e não nos compreendermos como um quadro pronto que deveríamos buscar conhecer. Seríamos "espelhos" a ser refletidos pelos deuses que habitam em nós. A “plenitude da vida” yoguica ao invés de significar o total absolutismo da Verdade/Deus/Isvara, poderia corresponder a imprevisibilidade da constituição de quem já somos pelos infinitos encontros de corpos/mentes (todos, também, modificações de Deus). Portanto, o(s) Deus(es) no yoga recebe(riam) o Relativo que o abraça dançando, e nunca exorcizando o diferente de mim.

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Quando o próprio Vedanta afirma que o indivíduo (Jiva) é a soma da sua Ignorância (Avidya) com a Consciência (Atma), está afirmando a Ignorância como totalidade do espírito e não algo excludente e empecilho para ascensão na sua senda espiritual. Em outra passagem o Vedanta adverte que a Pura Consciência torna-se a causa do Universo, pois Maya (lit. Ilusão) vive; não há concepção aqui da Ilusão/Relativo como algo deletério e que devesse ser exorcizado como o demônio - algo típico do pensamento cristão medievalista e não do hinduísmo. Em outra passagem, o Vedanta nos esclarece que o próprio conceito de Deus/Isvara não é a Verdade, mas a Ilusão (Maya): “Atma, com o condicionamento de maya, é chamado Isvara (ARIERA, G. 2006. Tattvabodhah: o conhecimento da verdade. Rio de Janeiro: Vidya-Mandir Ed. p.97).

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Com isso, pretendo demonstrar que o discurso de ódio adotado por yogues frente a polarização brasileira em finais de 2018, pode ser fruto de uma má interpretação dos textos do yoga e nunca da suas escrituras teológicas em si - mesmo porque os textos são vastos e não à toa possuindo seus 6 darsanas (perspectivas religiosas hinduístas). A narrativa do yoga pode ser herdeira da luta de yogues medievais da Índia (séc.X d.C.) que lutavam contra o fim do sistema politico de castas (um outro absolutismo da Verdade?) e da distância social que estes impingiam aos indianos que lá viviam. É retornar a um passado que nem os indianos gostam de relembrar quando se busca pautar o discurso yoguico moderno, nascido do relativismo da nova era e do pensamento pluralista e inclusivo erigido em comunhão com a mística e a alquimia muçulmana, da corporalidade tântrica, da visão não-dual de Shankara e a noção de igualdade social budista dos hatha-yogues indianos.

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Não abandonemos, portanto, yogues malandros (e marginais), o sonho de realidades mais plurais e verdadeiras em troca das velhas contendas cristãs de “quem tem o melhor Deus/Verdade” no seio do yoga contemporâneo, pois isso é retornar a um passado nada idílico e talvez inexistente.

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